Autora do livro Cabeça de Ruiva a advogada Ginger Boni escreve “Crônica de Uma Canção”
Dias atrás uma rádio reuniu uma dezena de artistas que interpretaram juntos, na tela (mas cada um em seu quadrado e em suas respectivas casas, estilo live) “Tempo Perdido”, da banda Legião Urbana, um hino da geração de 80/90 que, coincidentemente, é a minha.
“Todos os dias quanto acordo não tenho mais o tempo que passou” … impossível não cantar junto, tentando (sempre sem sucesso), imitar a voz grave do saudoso e inesquecível Renato Russo, enquanto a musicalidade perfeita da guitarra do Dado Villa Lobos e as batidas ritmadas do Bonfá invadiam meu corpo naquela tarde de quarentena. Num instante, me vi abduzida, calçando chinelos no meio da sala, de pé, enquanto assistia ao vídeo.
“Somos tão jovens”, somos invencíveis e nada é impossível. Somos tão jovens e o mundo é nosso e nada pode nos parar. Somos tão jovens, até o êxtase, berrando com os olhos fechados, a boca aberta, a cabeça voltada para cima e os braços abertos; o corpo retesado, na catarse final – “então me abraça forte”, foi quando me dei conta, no meio da sala naquela tarde de quarentena e calçando chinelos numa segunda-feira, que não somos mais tão jovens.
Não, não somos mais tão jovens. A revelação, cruel, me levou imediatamente a perguntar: o que fizemos com nosso próprio tempo?
O decorrer do tempo é estranho e é como se você pudesse, finalmente, descobrir o futuro. Depois de 30 anos da canção você já sabe que conseguiu beijar o menino mais bonito da classe numa festa nos idos de 1990 e que o beijo não foi lá essas coisas, você sabe que seu melhor amigo se casou com a vizinha loira e que tiveram dois filhos e hoje são colegas e divorciados. Você também já sabe que o menino mais inteligente da turma – aquele que poderia trabalhar na NASA – virou bancário e teve cinco filhos, criou barriga e é muito feliz. Inevitavelmente, você já sabe também dos amigos e colegas que se foram, muito cedo, deixando saudades até hoje e dos que se amarraram em vícios ou ficaram doentes na caminhada.
Depois de 30 anos da canção, não é mais segredo a opção sexual de cada um, quem dormiu com quem, os que casaram (uma, duas, três vezes!), os que se divorciaram, os assumidamente solteiros, os que não foram correspondidos, os que tiveram filhos e até netos, os que recorreram a cirurgia plástica e lipoaspiração, os que nunca saíram das casa dos pais e os que moram do outro lado do oceano, os que lutam pelo sustento e os que vivem de renda. Também não é segredo que o fulano que sempre quis ser médico acabou se formando em Direito e que o cicrano que queria ser engenheiro é engenheiro mesmo. Também, há aqueles que se tornaram famosos e você os assiste pela televisão. Há, ainda, os que assumiram a lojinha dos pais – e por falar em pais e mães: tantos ficaram pelo caminho, doce lembrança, alguns envelheceram bem e outros nem se lembram mais.
Não, não somos mais jovens, não vestimos mais jeans de cintura alta ou calça cargo, nem temos o cabelo repicado, volumoso, com uma franja curta ridícula. Não trajamos mais camisetas coloridas de nossas bandas prediletas ou de nossos ídolos políticos, nem calçado de surfista ou tênis cano alto. A muito tempo não fumamos mais Malboro ou bebemos Keep Cooler, não dançamos mais com passinhos. A vida passou e não foi tão ruim, mesmo que não tenha sido tão boa assim. Vivemos intensamente a canção, abraçando forte, com as luzes acessas, os dias extraordinários de uma vida ordinária.
E aqui estou, no meio da sala, para lá de quarentona, em meio a pior pandemia do século, desejando viver tudo de novo. E que se dane se não somos mais tão jovens, ainda temos o nosso próprio tempo e melhor: dessa vez, não temos tempo a perder.
Se você sorriu (ou chorou) ao ler isso é porque, meu amigo, não foi tempo perdido. (Por Ginger Boni)