Em entrevista, Gabriel Santana fala sobre papel na peça “O Sonho Americano”, reflete sobre carreira e os desafios do Brasil
“O Sonho Americano” é uma peça ambientada no Brasil dos anos 1970, em meio ao regime da ditadura militar, que aborda questões de insegurança, medo e desamparo. A trama gira em torno de Bento, um jovem envolvido na luta armada, que busca refúgio na casa de sua tia Antônia e da prima Beatriz. Embora seja bem recebido por ambas, o conflito se intensifica quando Beatriz é aprovada para uma pós-graduação em Harvard, e o medo de perder essa oportunidade a leva a considerar trair seu primo.
A narrativa conecta o passado ditatorial com as tensões e desafios da sociedade brasileira atual. A peça, dirigida por Luiz Carlos Checchia, conta com um elenco talentoso, incluindo Camila Costa Melo, Cristina Bordin, Flávio Passos, Gabriel Santana e Ruben Pignatari. A peça realizada no Teatro Studio Heleny Guariba, em São Paulo, ficará em cartaz aos finais de semana, trazendo à tona temas que continuam ressoando no Brasil contemporâneo.
Gabriel Santana, que interpreta Bento, é um jovem ator com uma carreira versátil. Ele começou sua trajetória em comerciais aos 10 anos e ganhou fama aos 13, ao interpretar o personagem Mosca na novela “Chiquititas” do SBT. Desde então, passou por produções renomadas como “Carcereiros” e “Malhação”, consolidando-se como um dos talentos promissores da nova geração. Recentemente, Gabriel participou do BBB 23, o que expandiu ainda mais sua visibilidade no cenário artístico.
Sobre seu papel em “O Sonho Americano”, Gabriel destacou os desafios de interpretar um personagem tão intenso, especialmente ao retratar o turbilhão emocional que Bento vive em uma época de repressão. Ele também ressaltou a importância de explorar a conexão entre a ditadura militar e as complexidades sociais do Brasil atual, em um trabalho que combina forte carga dramática e reflexão política. Confira a entrevista completa:
Gabriel, como foi o processo de preparação para o seu personagem, um jovem envolvido na luta armada contra a ditadura? Teve algum aspecto do papel que você considerou particularmente desafiador?
Fazer esse personagem está sendo uma delícia, porque é muito diferente de tudo que já fiz. Ele tem motivações distintas e um estado cênico único para iniciar. Estou gostando demais, de verdade. Acho que a maior dificuldade foi alcançar a energia cênica que a primeira cena exige, já que o Bento acaba de fugir dos policiais durante a ditadura militar, vai pedir abrigo na casa da tia, conversa com ela por um tempo e a cena começa justamente com ele perguntando: ‘E aí, tia, posso ficar mesmo ou não?’.
É muita coisa que o Bento viveu antes da peça começar, então, quando a cena inicia, ele já precisa estar fervendo de emoção e sensação. Sabia desde o começo que essa seria a maior dificuldade, e fui construindo esse momento ao longo do processo. Acho que, junto com a direção do Luiz, consegui chegar em um lugar muito, muito legal.
O que mais te atraiu no texto de “O Sonho Americano”? Como você acha que essa peça, ambientada nos anos 1970, dialoga com a sociedade brasileira atual?
Nossa, ótima pergunta! Vou tentar me resumir aqui, mas acho que tudo é uma questão de causa e consequência. Os momentos atuais que a gente vive são consequências de um passado que tivemos, e esse passado que menciono é justamente a época da ditadura militar. Antes da ditadura militar, acredito, pelo que estudei, que o Brasil vinha num caminho muito interessante, democrático, social, político, com articulações na esquerda brasileira. E aí, acho que houve uma desarticulação muito grande com a ditadura militar. Eles, propositalmente, desarticularam, torturaram e perseguiram a esquerda brasileira, e desde então, não conseguimos nos articular.
A direita tem uma postura que considero muito cruel, que é se apropriar de discursos da esquerda e tratar como se fossem seus. Hoje, a direita está articulada num lugar onde consegue seduzir uma pessoa pobre a acreditar que a meritocracia vai resolver tudo. Convencem os pobres através da religião, do empreendedorismo, de que isso vai tirar o Brasil da miséria, da pobreza extrema — algo que temos em muitos estados e cidades. Mesmo em São Paulo, temos uma pobreza muito extrema: muitas pessoas em situação de rua, vivendo sem saneamento básico. No Brasil inteiro, há esse déficit social.
A direita conseguiu criar um discurso que é, na essência, uma narrativa da esquerda — a ideia de unir a população para lutar por causas sociais —, só que de uma forma muito deturpada, na minha opinião. Acho que isso surgiu justamente quando a ditadura militar desestruturou e desbalanceou o jogo político no Brasil. Então, para resumir, é isso. Teria muito mais a falar sobre o assunto.
A peça trata de temas como medo, insegurança e traição em tempos de repressão. Como foi explorar essas emoções no palco e trabalhar com o restante do elenco?
Isso foi uma delícia. Porque, cara, falar e viver essas experiências — traições, desconfianças, torturas — é realmente um tema muito pesado, que precisa ser levado a sério quando assistimos. Mas acho que a função do ator é exatamente essa, sabe? A gente não precisa viver e sentir tudo isso o tempo inteiro, mas naquele momento no palco, precisamos ter essa verdade cênica.
Nos ensaios, nos apegamos muito aos outros atores. Conversamos bastante, debatemos, voltamos ao texto várias vezes para entender o que queríamos representar. A partir disso, encontramos a verdade cênica que buscávamos. Foi um processo desafiador, mas muito prazeroso. E como o elenco estava muito unido, num clima amistoso e caloroso, isso ajudou muito. Foi o ambiente ideal para alcançar essa efervescência artística que estamos mostrando no palco.
O relacionamento entre Bento e sua prima Beatriz é central na trama. Como você e a Camila trabalharam para construir essa dinâmica complexa?
Cara, acho que tem um processo que é feito dentro de cena, dos ensaios e fora de cena, né? Então, antes de começar os ensaios, na hora que a gente fazia uma pausazinha, quando acabavam os ensaios, sempre tentava criar essa relação de intimidade com a Camila, de conhecê-la melhor, sempre respeitoso, sempre sendo o mais cuidadoso e carinhoso possível, para que, quando eu estivesse em cena, sentisse liberdade de propor coisas, de toques, de cócegas, de tudo isso. O texto já diz muita coisa, mas acho que o trabalho do ator é muito mais do que só o que o texto diz. Como é que, com ações, como é que, com sentimento, como é que, com intenções na voz, eu consigo demonstrar essa relação? Tem esse nível de intimidade. Então, foi isso que fui construindo, testando toques, cócegas, caretas, afastamentos e aproximações em cena que eu poderia fazer e desenvolver junto com ela.
O espetáculo aborda questões políticas e sociais bastante sensíveis. Como você acredita que o público irá reagir a esses temas?
Cara, ótima pergunta. Acho que vai depender da idade de cada um que está assistindo. Assim como na peça, sou o mais novo, tenho 24 anos, mas a gente tem o Rubens, que já está na casa dos 80. Então, nós tivemos pessoas que de fato viveram esse tempo da ditadura militar. Eu estudei sobre isso na época da escola, conversei muito, debati muito politicamente sobre esse tempo, como essa história, como esse momento histórico afetou o nosso presente, mas ainda é um lugar muito técnico, sabe? Eu não vivi nada parecido com isso. Então, acho que as pessoas que viveram esse momento na infância vão acessar de alguma forma; as pessoas que viveram esse momento na época em que já eram adultas vão viver essa peça de outra forma, assim como a minha geração vai ver de outra forma. Acho que são muitos pontos de vista diferentes para se ter. Eu acho que os jovens vão conseguir cristalizar, vão conseguir ver, vão conseguir, de fato, tornar palpável o quão violento foi essa direção, essa ditadura militar, quanto foi esse governo da ditadura militar que a gente teve aqui no Brasil. E entender que não foi brincadeira mesmo, sabe? Não foi uma revolução, não foi um estado democrático. E quem vivenciou, de alguma forma, na infância, adolescência ou vida adulta, acho que vai ter um lugar mais emotivo, mas de reconhecimento, talvez; acho que pode afetar em outros lugares.
Você tem experiência tanto na TV quanto no teatro. Como foi o retorno ao palco com uma peça de grande carga emocional como esta?
Ah, teatro é onde a gente tem mais liberdade artística, eu acho, sabe? Eu gosto muito do teatro por conta disso. São histórias muito diferentes, com propostas sempre muito diferentes, e é onde tive a oportunidade de explorar personagens mais distantes de mim também, sabe? Então, acho que fazer teatro é um lugar que me completa artisticamente, me ensina muito artisticamente, me desenvolve como ator de uma maneira absurda, assim. Então, é sempre grato, é sempre muito feliz fazer teatro para mim.
Você ficou conhecido pelo grande público por seu papel em “Chiquititas” e, mais recentemente, no remake de “Pantanal”. Como foi a transição de papéis mais leves para personagens com uma carga dramática maior, como o Renato em “Pantanal”?
Acho que os meus papéis foram amadurecendo junto comigo, sabe? Fico muito grato com isso. Ao analisar minha trajetória, particularmente gosto muito dela, onde estou conquistando e onde ainda quero conquistar. Porque foi isso, né? Acho que Chiquititas já tinha um tema bem pesado, né? Que é a questão da adoção, a questão dos órfãos no Brasil. Mas ainda era com uma linguagem, uma estética voltada para o público infantil. E eu era uma criança também, onde estava aprendendo a atuar, onde estava experienciando uma nova carreira, uma nova vida. Então, amadureci muito em Chiquititas, e aí depois fui fazendo outros produtos, outras séries. Até que chegou Malhação, chegou Pantanal também, cada vez mais com uma carga mais dramática.
Quando fiz Malhação, era um motoboy que sustentava a família, tinha uma namorada, e era alívio cômico também, o Kleber e a Anjinha. E aí eu já tinha uns 19, 20 anos, estava terminando de me formar na faculdade de Artes Cênicas. E aí, em 2022, em Pantanal, eu fiz um vilão, um vilãozinho, um antagonista. Então, acho que os meus personagens foram amadurecendo junto com o Gabriel e com a trajetória artística do Gabriel. Isso que acho muito interessante. E acho que, cada vez mais, quanto mais eu amadureço, mais os produtores de elenco também veem esse amadurecimento meu na minha carreira e me selecionam para papéis cada vez mais dramáticos. E gosto muito, particularmente, o que mais gosto de fazer como ator é drama.
Em 2023, você participou do Big Brother Brasil. Como essa experiência impactou sua carreira e sua vida pessoal?
Ah, gente, o Big Brother é o reality show com mais audiência no mundo; é o programa com a maior audiência no Brasil também. Então, é uma vitrine muito boa, muito interessante. E acho que consegui ter uma trajetória muito legal ali dentro também. Eu sou um ator que é muito ligado a produções políticas e produções sociais; me engajo também, mas também tenho um lado muito forte na minha carreira, que é essa parte comercial. Então, para mim, foi muito importante. É que, quando a gente faz uma novela, assim que começamos a gravar, em dois, três, cinco meses no máximo, já estamos nas telinhas, né? Mas, desde 2023 para cá, desde que saí do BBB, foi quando comecei a trabalhar muito mais como ator; antes, pegava um projeto por ano e uma peça, duas peças no máximo. Agora, estou pegando muitos trabalhos. Desde que saí do BBB, consegui gravar dois filmes, uma série, estou gravando a segunda temporada de um podcast do Amazon Music e da Wondery Brasil, e a segunda peça também que faço, tudo isso em um pouco mais de um ano, em um ano e meio. Então, fico muito feliz por ter conseguido essa repercussão de uma forma midiática, em que os produtores de elenco têm confiado em mim e estão vendo que, além de ser um ator comercial, também sou um ator com muito conteúdo artístico, político e social.
Você se assumiu bissexual e falou abertamente sobre ser birromântico e demissexual. Como tem sido a recepção do público em relação à sua identidade e como você espera que isso contribua para o diálogo sobre diversidade e inclusão?
Eu gosto de pensar e talvez prefira acreditar que tenho sido bem acolhido de uma maneira geral pelo público. Óbvio que sabemos que o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIAPN+ em números absolutos, então isso não é por acaso; ainda há muita gente preconceituosa, muita gente racista no Brasil, e faço parte desses dois espectros, né? Sou uma pessoa preta de pele e, claro, bissexual. Então, tendo a acreditar que sim, devo sofrer muito preconceito velado, mas as pessoas que me param na rua sempre me acolhem com muito carinho; as pessoas da minha rede social também me acolhem com muito carinho. Sempre que saímos da bolha, acabamos saindo em uma página de fofoca, tirando a gente de contexto; vemos um hater grande, né? O Twitter também era um antro de ódio de pessoas que acham que podem confundir liberdade de expressão com falar o que quiser na hora que quiser, sem ter consequências dos seus atos. Mas prefiro acreditar que tenho sido bem acolhido, sim, na comunidade LGBTQIAPN+, que tenho sido muito bem acolhido pelos meus fãs, pelas pessoas que admiram meu trabalho e pelas famílias, de uma maneira geral.
Você já atuou em diversas áreas do entretenimento, incluindo novelas, reality shows e agora teatro. Existe algum outro campo que você gostaria de explorar, como direção ou roteiro?
Então, estou fazendo uma pós-graduação agora em direção cênica, justamente porque gosto muito da arte de uma maneira geral. Acho que passar minha visão como diretor em algum espetáculo teatral e, mais para frente, como diretor de audiovisual também pode ser algo bem interessante. Como roteirista, para ser sincero, não é algo que me agrada ainda. Eu assumo que sou um bom palpiteiro. Tenho sócios com quem falamos, e um deles é roteirista; ele escreve muita coisa, e a gente sempre troca ideias, sempre fala o que acho que dá para melhorar, alguma coisa ou outra. Mas acho que ainda não tenho essa vocação, talento ou vontade de escrever, não. Mas quem sabe? O futuro pertence a Deus.
Quais são seus próximos projetos e o que você espera conquistar nos próximos anos de sua carreira?
Então, além de ator e aspirante à direção, eu também sou produtor, né? Tenho uma produtora de audiovisual com dois sócios, e a gente está escrevendo alguns projetos em editais, em leis federais e estaduais, apresentando alguns projetos nossos também diretamente para algumas produtoras e streams. Então, quem sabe, daqui a um tempo vocês não consigam ver uma peça de teatro ou um filme produzido por Gabriel Santana na sua produtora? Isso é um grande objetivo a médio e longo prazo. A curto prazo, é óbvio que o objetivo é terminar essa temporada aqui. Vai ser linda a do Sonho Americano. Ano que vem, quero viajar com essa peça pelo interior de São Paulo e do Brasil. Talvez fazer circuito Sesc e Sesi aqui em São Paulo também seja uma coisa que a gente está batalhando e conversando para conseguir alcançar.
Deixe uma mensagem para o público.
Gente, venham nos assistir aqui em ‘Um Sonho Americano’. É uma peça muito legal e importante de ser debatida em 2024, no cenário político atual que estamos vivendo. A ditadura militar faz parte da nossa história, e temos que revivê-la e ter ressignificado sempre a cada ano, a cada década, a cada século, porque é uma coisa que influenciou muito a história do Brasil e precisa ser contada por diversos vieses diferentes. O nosso é um deles. Tenho certeza de que vocês vão rir, chorar, se divertir e se emocionar com essa peça que é ‘Um Sonho Americano’.